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Reflexões do Autor sobre as novas regras da Reprodução Assistida
Resolução CFM nº 1.957/2010
“Tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença.”
(William Osler)
O mundo evolui, o comportamento humano se modifica com o passar dos anos, a ciência progride e os conceitos morais, lei e ética se adaptam com o decorrer da vida. Nas últimas décadas a medicina e a tecnologia avançaram a saltos incríveis, comparadas a um mundo de ficção. Isso nos faz pensar e refletir: para onde vamos? Aonde chegaremos? Será um exagero? E o que é certo ou errado? O sofrimento pela vida? E finalmente: será que existe um ponto final?
Entendo que para tudo nesta vida deva existir um limite e a compreensão se a escolha de um determinado caminho é para o bem ou para o mal. Para esta ponderação existem resistências naturais como as leis, a ética e até mesmo os princípios da fé de cada religião que muitas vezes brecam mais forte, sem derrapagens, a ousadia científica desenfreada. As leis e a ética tentam frequentemente se adaptar ao desenvolvimento dos costumes de cada povo. Basta olharmos para as conquistas dos casais homoafetivos. Porém, é sempre bom lembrar que o legal e ético, em determinada sociedade ou país, não é o mesmo em outro.
Na medicina, os tratamentos de fertilização estão entre os que mais recebem um olhar crítico da sociedade, pois representam para alguns a “manipulação de vidas que não ocorreram naturalmente”. Muitas críticas talvez sejam merecidas, mas outras não. Nem todos conseguem entender a dor dos casais que têm dificuldade em ter filhos naturalmente e precisam utilizar técnicas de fertilização. As leis e os Conselhos de Medicina procuram organizar limites para esses procedimentos médicos impedindo abusos incontroláveis. Em janeiro de 2011 chegou a Resolução de 1957 do Conselho Federal de Medicina, que substituiu a anterior (nº1358/92), atualizando as regras desses tratamentos. Nesta resolução algumas regras permanecem iguais à anterior e outras se modificaram como forma de “determinações”. A seguir, resumo do que era e de como ficou:
- Casais homoafetivos e pessoas solteiras
Como era: a regra não especificava se casais de mesmo sexo poderiam usar técnicas da reprodução assistida e não mencionava solteiros; citava “paciente ou casal infértil”.
Como ficou: o texto agora usa o termo “as pessoas”, o que abriu a possibilidade para casais homoafetivos e homens e mulheres solteiros; também caiu a necessidade da concordância do companheiro para pessoas casadas.
- Reprodução “Post Mortem”
Como era: não era objetivo quanto ao uso de embriões ou gametas congelados de pessoas mortas.
Como ficou: a reprodução assistida “post mortem” pode ser feita desde que exista autorização precedente específica de quem morreu.
- Número de embriões
Como era: quatro era o número de embriões implantados de cada vez na paciente, independentemente da idade.
Como ficou: está sujeito a idade - até dois embriões para pacientes com até 35 anos, até três para pacientes com idade entre 36 e 39 e até quatro para pacientes com 40 anos ou mais.
O que continua
Não se pode ter lucro com doação de material genético.
Não se pode pagar pela chamada “barriga de aluguel”.
É vetado escolher o sexo do bebê.
Pacientes devem informar o destino do material congelado (células e embriões) em casos de divórcio, morte e possibilidade de doação.
A “redução embrionária”, ou retirada de parte dos embriões implantados com sucesso, é proibida.
Doadores, seja de gametas ou embriões, devem permanecer anônimos.
Os procedimentos e suas chances de sucesso devem ser sempre passados aos pacientes com exatidão.
Destas modificações, acredito que o acolhimento dos casais gays e pessoas solteiras já era esperado, uma vez que a cada ano o mundo abre os braços para eles que, num passado próximo eram rejeitados e considerados seres humanos diferentes. Os homoafetivos conquistaram seu espaço e é fácil de presumir que essa aceitação na Reprodução Humana já era prevista, porém, algumas regras ainda não são claras quando o assunto é o homossexual masculino. Mas, nessas situações, ainda temos que observar a evolução dos primeiros casos.
Os tratamentos de fertilização “Post Mortem” com gametas de pessoas falecidas que congelaram o sêmen ou óvulo, comum aos pacientes com câncer antes de iniciar um tratamento de quimioterapia ou cirurgia mutiladora há tempos, merecia uma solução e desta vez parece ter sido acertada.
Entretanto, chama atenção e me preocupa as “determinações” do CFM quanto ao número máximo de embriões transferidos permitidos a uma mulher submetida ao tratamento de Fertilização in vitro. A própria palavra determinação vem contra aos princípios da medicina humanizada em que se preconiza que os pacientes devem receber um tratamento individualizado. Nesta definição, caberá ao médico, além de aplicar a ciência baseada em evidências, interpretar as necessidades de seu paciente, suas emoções, o seu passado médico, os riscos e benefícios de cada tratamento.
Uma conduta médica “determinada”, sem considerar cada caso de maneira individualizada, traz a idéia que os casais são todos iguais como tubos de ensaio em laboratórios em que as reações químicas são previstas e idênticas. Os tratamentos devem ser padronizados, sem variações, detalhes ou nuances. O texto significa que não caberá ao médico escolher nada diferente do que está sendo proposto. E as pacientes? E o dinheiro gasto por elas? Suas angústias e frustrações por tratamentos anteriores sem sucesso, o desgaste dos casamentos em busca de um filho, não devem ser considerados? Eles não devem ser ouvidos após serem considerados os riscos de cada tratamento?
Há algum tempo, com a evolução das técnicas reprodutivas, as clínicas de reprodução transferem menos embriões, já que a própria evolução científica nos obriga a fazer isto. Nenhum profissional, em sã consciência, deseja a gestação múltipla. Isso porque todos têm noção dos riscos que envolvem estas gestações. Estamos no tempo de pouca medicação, menos óvulos fertilizados, menos embriões transferidos e melhores resultados. Esta “determinação” do CFM está de acordo com uma prática já executada há anos por praticamente todas as clínicas, mas as exceções devem ser consideradas, respeitadas e individualizadas pelo médico que assiste a paciente. Exemplos contrários a esta regra podem ser citados e aqui cabem alguns questionamentos:
1) Caso 1:
Questionamento: Uma mulher de 32 anos que já passou por 5 FIV´s sem sucesso, com endometriose e um único ovário, deverá ter o número máximo de dois embriões transferidos da mesma forma à qual foi submetida pela primeira vez?
Reflexão: Acredito que seja possível imaginar a angústia e o sofrimento deste casal por seguidas frustrações, além do alto custo financeiro já investido. E, por isto, desde que eles concordem, não deveriam ter uma chance maior de gravidez, transferindo um número maior de embriões?
Resposta: Sim.
2) Caso 2:
Questionamento: Um casal forma embriões de má qualidade, com poucas células e muita fragmentação, o que acarreta em uma chance menor de implantação.
Reflexão: Não deveria ter essas alterações compensadas, tranferindo-se um número maior de embriões para que se aproxime da taxa de sucesso gravidez ao valor de embriões de melhor qualidade?
Resposta: Sim.
3) Caso 3: O avesso
Questionamento: Uma mulher de 46 anos recebe óvulos de uma outra de 28 anos. A “determinação” da Resolução 1957 diz que nesta idade podem ser transferidos quatro embriões e não prevê que se os mesmos forem provenientes de óvulos de uma doadora de 28 anos poderão gerar na mulher mais velha uma gestação múltipla com riscos ainda maiores. Sabe-se que quanto maior a idade, maior será a chance de complicações na gestação como diabetes, hipertensão e parto prematuro (Iatrogenia refere-se a um estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico).
Além dessas dúvidas e outras que ainda surgirão, percebo nesta “determinação” detalhes vagos como, por exemplo: a lei diz que até 35 anos podemos transferir dois embriões. A mulher com 35 anos e seis meses enquadra-se em qual grupo visto que já tem 35 anos completos?
Acredito que, com o passar dos anos, muitas dúvidas existirão e com a compreensão dos profissionais sensíveis e qualificados, poderemos alcançar um nível de entendimento capaz de fazer cada vez mais e melhor pelas nossas pacientes.