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Fabio Daniel Romanello Vasques1
Toda vez que tratamos ou conversamos sobre os procedimentos ou formas de reprodução assistida, doação de espermas ou óvulos, trazemos à tona as atuais notícias que envolvem os procedimentos médicos que visam à constituição de uma família. A origem da vida e a existência do homem podem ser explicadas pela Bíblia ou pelos ensinamentos científicos.
Numa leitura jurídica antiga, tínhamos a ideia da família vinculada à religião, num formato em que o casamento tinha o fim primário, que é a procriação e a educação da prole e o secundário, que consiste na colaboração mútua e no remédio concupiscência.
Buscando fundamentar o conceito de família, o falecido jurista Edgard De Moura Bittencourt, em sua obra antiga “Família”, cita um civilista na época que ensinava seus alunos que tratava a família como um fato natural; não cria do homem, mas da própria natureza. Segundo ele o professor assim falava aos seus alunos:
“(...) Que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família...”
Os conceitos apresentados demonstram uma ideia antiga para família, em muito diversa das famílias atuais, com núcleos familiares totalmente fora dos pensamentos religiosos.
Na sociedade moderna, não podemos restringir a existência da família ao núcleo tradicional do pai e mãe, casados, que geram filhos. Houve mudanças na sociedade, revoluções culturais, especialmente em decorrência do acesso à informação.
Tais transformações, como não poderia deixar de ser, revolucionaram todas as áreas da vida humana, incluindo a biologia e a medicina. Aliás, os avanços nesses campos foram maiores nos últimos 50 anos do que nos 50 séculos anteriores.
Podemos hoje falar da possibilidade de reprodução, sem qualquer tipo de conjunção carnal, algo impensado em tempos antigos. Essa possibilidade de procriação sem sexo deriva de todo o desenvolvimento da sociedade, sendo este potencializado pelos estudos científicos, desde a antiguidade até os momentos atuais, bem como pelos avanços tecnológicos proporcionados pela sociedade contemporânea, pela desvinculação das regras religiosas, pela busca do sexo livre e pela equiparação de direitos entre homens e mulheres. Toda essa revolução da busca da vida digna e uma sociedade humana mais justa e igualitária, deriva dos princípios norteadores da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
A família é tratada também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu Art. XVI, 3, que coloca a família como ponto básico de toda a sociedade:
“a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.”
Dessa mesma forma, observando toda a revolução cultural e social que acontece, especialmente em nosso País, em 1988 foi promulgada A Constituição da República, a Constituição Cidadão, um grande marco na democratização e difusão da justiça social no Brasil. Após anos de cerceamento, a Constituição vigente buscou alterar aquela realidade até então vivida e, assim, a ideia de família nela descrita está voltada à sua instituição.
Dentre as principais primícias de nossa Lei Maior estão princípios da dignidade humana. Podendo esse ser considerado como uma cláusula geral de tutela dos direitos da personalidade.
O direito ao livre planejamento familiar está previsto no parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição da República nos seguintes termos: Artigo 226. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O Código Civil vigente, ainda que se tenha esperado décadas para sua promulgação, reconhece essa nova forma de núcleo familiar, estabelecendo em seus artigos 1.596 e seguintes, as normas quanto à filiação.
O professor JORGE SHIGUEMITSU FUJITA fala que no século 20 houve mudanças que alteraram o modelo da família em que o marido era o chefe da sociedade conjugal, sendo a ele pertinente todas as atribuições, não havendo limites de seus mandos. Para o ilustre autor, “A filiação biológica pode resultar do casamento, da união estável ou de uma relação concubinária. Mas pode decorrer de uso de uma das técnicas da reprodução humana assistida, homóloga ou heteróloga...”.
Acrescenta ainda:
O conjunto do ato sexual e das intervenções da reprodução medicamente assistida pode considerar-se como integrado numa ação significativa única de amor do casal. Consequentemente, é o amor, tendencialmente procriador, de um casal infértil, e o ato técnico que estabelecem a unidade entre a sua vida conjugal e as técnicas da reprodução assistida a que ele se submete. Poder-se-ia dizer até que as próprias dificuldades físicas e psicológicas dessas técnicas constituem uma prova de amor recíproco do casal, a prova de amor com o nascituro. Mas, pela falta de uma situação ideal, as técnicas de reprodução assistida são consideradas o último recurso.
Mas a busca pela fertilização, qualquer que seja o método aplicado, visa principalmente à constituição de um núcleo familiar, seja ele qual for, o moderno ou o tradicional. Fato é que, além do desenvolvimento contínuo de técnicas de reprodução assistida, o número de clínicas especializadas em reprodução humana cresce a cada ano, bem como o número de mulheres e casais que buscam esses procedimentos. Importante frisar que a manipulação genética humana, a redução embrionária (aborto seletivo de fertilização artificial) e a cessão de útero ou a reprodução humana mediante gestação substituta (barriga de aluguel) não estão reguladas por nosso ordenamento jurídico. Logo, acabamos por nos ater às questões éticas e às regras emanadas dos Conselhos Federal e Regional de Medicina atinentes a cada espécie de procedimento.
Mas a possibilidade de gerarmos uma família, ou, colaborar para que outras pessoas possam realizar o sonho da maternidade está ligado ao nosso íntimo e às informações que trazemos de nossas próprias famílias. Ainda, para fazer ou colaborar para a utilização de qualquer procedimento de reprodução assistida, contamos necessariamente com a participação de profissionais da área médica.
Esses profissionais, assim como qualquer outro profissional que tenha acesso à informação íntima de outro ser humano, tais como os advogados, psicólogos, psiquiatras e até mesmo os religiosos, devem respeitar regras básicas de procedimento, especialmente aquelas com condizem em não expor ou individualizar situações a outras pessoas.
O juramento de Hipócrates, realizado por todos os formandos de medicina, é, em sua essência, um documento que positiva a conduta moral e ética do profissional de medicina. Todas as colocações apontadas não tratam de nada além da ética.
Um trecho do juramento trata o seguinte:
“Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza à perda. Do mesmo modo, não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva”.
Ética e bioética são questões ligadas muitas vezes ao íntimo de cada cidadão ou, no caso, médicos e cientistas. Mas “a preocupação com a vida humana não se dá apenas na forma de simples respeito, como também na defesa ativa, perfeitamente identificável nas Cartas dos direitos internacionais, que estabelecem a “inviolabilidade da vida”.
O termo ética deriva de dois vocábulos gregos: o primeiro seria o costume, e o segundo entendido como comportamento resultante da repetição dos mesmos atos.
De acordo com o professor José Carlos Souza Silva, “A ética estuda o comportamento do homem livre diante de si próprio e do meio em que vive. Tem como finalidade traçar-lhe deveres no plano mental, exigindo- -lhe a prática do bem. Se o homem tem liberdade para comportar-se, pode, se quiser, agir eticamente.
A ética não se esgota na teoria, ela é prática do bem, e praticar o bem é agir respeitando os valores morais que estão dentro da consciência individual e coletiva. E, assim, ela exerce o poder de censura sobre as relações sociais”. Derivada da ética, a bioética visa à discussão e à conservação dos valores humanos e de sua dignidade, além dos valores morais, não se resumindo aos valores morais das pessoas, aqueles valores atingidos pelo desenfreado desenvolvimento científico.
Melhor entendimento pode dizer que “A bioética deve ser um instrumento intelectual de reflexão e elaboração de critérios cuja finalidade precípua deverá ser a proteção do ser humano”. A origem do termo ocorreu à primeira vez em 1970, com o oncologista Van Rensselaer Potter, em seu artigo The sience of survival, “Definida como o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, considerado à luz de valores morais”.
Do direito, com toda essa diversidade de novidades, passamos a tratar da bioética, uma forma de estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, considerada à luz de valores e princípios morais, dentro de um contexto jurídico.
Cumpre relembrar que, para muitas situações, novas para a sociedade, por exemplo, o procedimento de utilização de útero alheio, vulgarmente conhecido como barriga de aluguel, não é definido em nosso ordenamento Jurídico, estando os julgadores e médicos atrelados às regras estabelecidas pelo órgão médico.
Outro ponto muito discutido recai quanto ao armazenamento de embriões. Seria correto, no caso de falecimento de um dos cônjuges, ou na separação destes, sua utilização? Muitos autores que tratam a matéria visam evitar a coisificação do ser humano. O embrião não pode ser tratado como uma coisa, um objeto. A discussão sobre a quem cabe o material genético no caso de separação é muito debatida. Sua utilização indevida, por qualquer um dos cônjuges, seja pelo falecimento ou pela separação do casal, poderá criar situações jurídicas de difícil solução.
Imaginemos, após a morte do marido ou companheiro, ultrapassado todos os atos da sucessão, tais como inventário e partilha dos bens, o que ocorreria se a mulher utilizasse o embrião congelado de seu falecido marido e se tornasse mãe? Essa criança, assim como os irmãos já existentes, tem o mesmo pai, falecido, e, por sua vez, pode vir a ter direitos de sucessão, como seus irmãos.
Importante ressaltar que nossa legislação (Código Civil) já reconhece a paternidade fora do “conceito tradicional”:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Mas imagine uma ex-mulher que, de má-fé, utilize o embrião sem autorização do ex-marido. Podem, daí, surgir muitas consequências jurídicas, e algumas delas podem atingir a parte econômica do ex-marido.
Analisando casos análogos, a doutrina manifesta que, quando da contratação do serviço de criopreservação, deve, nesse ato, existir a expressa manifestação dos titulares (casal contratante), quanto ao destino do embrião, seja na separação dos contratantes ou “post mortem”. Importante ressaltar ainda que a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina não autoriza o descarte do embrião.
A Consulta 20.631/98, realizada junto ao Conselho Federal de Medicina, estabelece o intuito de obrigar o casal contratante a definir o destino dos embriões congelados em um prazo máximo de três anos. Tal período levou em consideração a possibilidade de transferência “a fresco” do material, e ainda evitar a superpopulação de pré-embriões nas clínicas.
Devemos sempre considerar que nenhum embrião pode ser transferido, destruído ou usado para pesquisa, sem que haja um acordo mútuo entre o casal. É de suma importância que o casal, nesse momento de muita tensão e incertezas, tenha conhecimento de que não estamos tratando de algo, mas de um ser. Caso não seja possível a continuidade do casamento, seja pela morte, seja pela separação, ambos devem estabelecer as regras vindouras, ou mesmo pactuar que a transferência dos embriões criopreservados somente será realizada mediante a autorização expressa do casal. Assim, para a análise das questões éticas nos procedimentos médicos, buscamos entender cada atitude das partes e qual a real circunstância e situação.
Muitos doutrinadores tratam a respeito do tema, mas aqui traço a colocação da médica e advogada Lilian Maria Albano: para ela a Bioética está dividida em geral, especial e clínica. A geral está vinculada aos valores da ética médica e às fontes documentais. A especial está atrelada aos grandes dilemas médico-biológicos, como a engenharia genética, o aborto, a eutanásia e a experimentação clínica. Por fim, a clínica analisa os valores e princípios, a fim de aplicá-los a uma situação concreta da medicina.
Todavia, há um estudo das atitudes do médico ante ao paciente. Essas atitudes seriam exatamente a forma com que ele informa ao paciente de todos os aspectos que envolvem a doença ou procedimentos a serem adotados, de forma clara, expositiva e explicativa, visando não pairarem dúvidas ou lacunas na compreensão, ou, quando não for habilitado, melhor dizendo, não tiver conhecimento técnico para determinada atividade ou tratamento, indicar um colega que possa proporcionar ou informar sobre um tratamento, ajudar a decidir e dar apoio às decisões tomadas pelo paciente. Concluímos que os princípios éticos ligados à medicina e aos procedimentos médicos adotados perseguem a linha limítrofe entre a lei e a necessidade de desenvolvimento de técnicas ou medicamentos para a melhora da vida, ou sua manutenção. Sem dúvida, as legislações vigentes podem punir aquele que as transgride, mas a ética de cada um deve observar o limite de cada regra.
1 Fabio Daniel Romanello Vasques, advogado, Mestre em Direito na Sociedade da Informação pelas Faculdades Metropolitanas Unidas; professor da Escola Superior da Administração, Marketing e Comunicação de Santos – ESAMC Santos e Universidade Presbiteriana Mackenzie