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Tatiana Lionço1 e Rosana Castro2
A bioética emerge como estratégia de garantia dos direitos humanos face ao horror do holocausto e aos abusos da experimentação científica envolvendo seres humanos. Originalmente, propôs como parâmetros éticos os princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, mas logo estendeu seu campo de regulação e crítica para a consideração da vulnerabilidade de certos grupos populacionais à violação de seus direitos humanos no contexto da assistência à saúde e da exposição ou limitação do acesso às novas tecnologias
1 Tatiana Lionço: Doutora em Psicologia pela UnB, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, professora de Psicologia da Saúde do UniCEUB/Brasília.
2 Rosana Castro: Antropóloga, mestranda em Antropoloia Social na Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Biomédicas (DINIZ & GUILHEM, 2002). Assim, A bioética é um campo de conhecimento e intervenção que visa proteger os direitos humanos de pessoas envolvidas em pesquisas científicas e em práticas médicas. O exercício da medicina envolve, em grande parte, experimentação científica, sobretudo nos casos em que propõe novas tecnologias para fins de viabilização de mudanças inovadoras nas condições de vida e de saúde. Essas mudanças, operadas pela biomedicina, visam inaugurar alternativas à vida e à saúde anteriormente não viáveis, mas tornadas possíveis pelos avanços biotecnológicos. Nesse cenário, surgem diversas questões éticas, sobretudo em relação aos critérios de acesso às novas tecnologias, mas também quanto às repercussões que os avanços científicos impõem à vida e às experiências humanas. A reprodução humana sempre foi uma experiência social regulada por práticas culturais e históricas.
Diferentes povos em diferentes momentos históricos adotaram estratégias tanto para potencializar a fertilidade quanto para garantir que as relações sexuais não acabassem necessariamente em procriação. Em meados do século 20, avanços biomédicos desencadearam uma revolução na reprodução humana (BLANK, 1990). A tecnologia biomédica permitiu desvincular tanto a sexualidade da reprodução (pelo uso da pílula anticoncepcional), quanto a reprodução humana do coito heterossexual (por meio das novas tecnologias reprodutivas).
Medicações hormonais sintéticas prescritas para fins de regulação do organismo para a fertilidade, mas também as técnicas de manipulação de material genético, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro, por exemplo, permitiram a viabilização de concepções que não seriam consumadas senão por meio dessas intervenções. As novas tecnologias reprodutivas, nesse sentido, podem ser definidas como um conjunto de procedimentos tecnológicos voltado para o tratamento de condições de infertilidade e infecundidade, por meio de técnicas que substituem a relação sexual no processo da concepção de embriões humanos (CORRÊA & LOYOLA, 1999; DINIZ & COSTA, 2005).
A emergência de experiências de reprodução humana assistidas no Brasil, na década de 1980, foi acompanhada de grande publicidade, tendo sido inclusive tema de uma novela de grande audiência, a “Barriga de Aluguel” (CORRÊA, 1997). O tema foi mais largamente debatido na mídia do que pela comunidade científica ou mesmo por meio de fóruns públicos de deliberação de normas e políticas relativas à sua aplicabilidade como serviço na atenção à saúde da população (CORRÊA, 1997; DINIZ, 2000).
A tendência da exposição do tema na mídia, no entanto, favorece a sobrevalorização das tecnologias reprodutivas, reforçando a ideia de que o poder médico teria superado as limitações reprodutivas, ocultando suas limitações e silenciando os desafios éticos de democratização desses serviços a possíveis usuários que não se encaixam no modelo familiar heterossexual.
Pode-se observar também uma polarização no debate público sobre a avaliação social das novas tecnologias reprodutivas. Apesar de a mídia explorar com mais frequência os aspectos positivos das tecnologias, também se veiculam valores negativos sobre os efeitos desse avanço na medicina reprodutiva. Os avanços tecnológicos no campo da reprodução humana são apresentados ora como conquista benéfica da biomedicina, por meio da exaltação do poder médico na superação de entraves individuais para a consumação da reprodução humana, ora como práticas de risco, sobretudo moral, sobre a família e a ordem patriarcal. Abrangem também o tema da diversidade humana, já que o debate muitas vezes vem acompanhado da sombra da eugenia na seleção de embriões (CORRÊA, 1997).
Questões éticas e de proteção aos direitos humanos fundamentais devem ser consideradas nesse debate, no qual podemos destacar a contribuição dessas novas alternativas terapêuticas para a manutenção de padrões morais hegemônicos em relação à ordem de gênero e, mais especificamente, à família patriarcal. A consideração crítica dessas novas tecnologias biomédicas a partir da perspectiva da Bioética feminista permitirá questionar os limites da autonomia no acesso à assistência reprodutiva, sinalizando para a necessidade da defesa dos direitos humanos como estratégia de enfrentamento do poder de normatização disciplinar que a medicina pode impor aos corpos e costumes (FOUCAULT, 1995).
No Brasil, não existe ainda nenhuma legislação que regulamente os procedimentos de reprodução assistida. O único documento de que se dispõe para tanto é a Resolução 1358/923 do Conselho Federal de Medicina. Este, apesar de não ter força de lei, oferece as orientações éticas para utilização das novas tecnologias reprodutivas nas clínicas de fertilização. Nesse documento estão presentes algumas informações sobre o que os médicos estão permitidos ou impedidos de fazer no uso das tecnologias reprodutivas.
Em uma análise das sessões dessa resolução, percebe- se uma tentativa de balizar a atividade médica quando da manipulação de gametas para fins reprodutivos. A utilização de técnicas médicas para realização de procedimento de fecundação abriu uma série de novas situações que impõem dilemas específicos, os quais demandam reflexão e regulamentação ética para além dessa resolução.
Diversos aspectos do uso das novas tecnologias conceptivas, porém, encontram-se defasados nesse documento, como a assistência à reprodução para casais não-heterossexuais, a doação de embriões pré-implantados para pesquisa científica e clonagem humana.
Para este capítulo, foram eleitas algumas questões éticas sobre a reprodução humana assistida e a regulamentação ética dessa prática. Nas sessões seguintes serão abordadas problemáticas referentes às tecnologias reprodutivas que requerem reflexão crítica, tais como a compulsoriedade da maternidade, os critérios de elegibilidade para o acesso às tecnologias reprodutivas, as relações entre médicos e usuários e a figura do embrião extracorporal. Todos esses pontos aqui levantados merecem reflexão ética para que a aplicação de procedimentos em reprodução assistida e seus efeitos não contribuam para a violação de direitos humanos.
Disponível para consulta em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ s cfm/1992/1358 1992.htm
A expectativa social pelo cumprimento do papel da maternidade ganha nova força com a disponibilização no mercado das novas tecnologias reprodutivas conceptivas. Apesar de a reprodução assistida implicar em mediação tecnológica da reprodução humana, persiste a ideia de que a maternidade promovida pelas tecnologias reprodutivas seria natural, apenas com uma pequena interferência da ciência. Assim, o fato de a maternidade se concretizar a partir de etapas como concepção, gestação e parto parece chancelar a suposta naturalidade dos procedimentos em reprodução assistida.
De acordo com Luna (2007), as técnicas de reprodução assistida teriam como objetivo a produção do corpo grávido. Nesse sentido, o nascimento de um bebê não seria necessariamente o foco dos tratamentos, mas sim a realização da gravidez. Para tanto, uma série de procedimentos são necessários, a grande maioria deles executados no corpo feminino: exames, remédios, ultrassonografia, aspiração folicular, fertilização e implantação no útero – muitos deles extremamente incômodos e doloridos, envolvendo variados graus de risco.
Nota-se, assim, que a medicalização da reprodução humana incide particular e principalmente sobre os corpos das mulheres (CORRÊA, 1997). Mais do que isso, essa medicalização busca justificativa partindo do pressuposto de que a maternidade expressa como desejo é algo destinado às mulheres como parte de sua própria natureza particular, quadro no qual a medicina exerce o papel de intervir tecnicamente quando a natureza não realiza a maternidade por si só.
Salienta-se, ainda, que aliada à compulsoriedade da maternidade se apresenta a falibilidade das novas tecnologias reprodutivas, o que relança a mulher à vulnerabilidade ao sofrimento psíquico quando a gravidez não se consuma por meio da reprodução assistida.
Predomina um silêncio sobre o alto índice de insucesso das tecnologias reprodutivas, aliado à exaltação da tecnologia biomédica e à falsa ideia de que não haveria impedimentos para a consumação da procriação (CORRÊA & LOYOLA, 1999).
Apesar de a intervenção tecnológica sobre a reprodução explicitar a não restrição dos processos reprodutivos a uma suposta ordem natural, tende-se a atribuir naturalidade à maternidade e mesmo à família que se visa constituir por meio da assistência reprodutiva. Essa “naturalidade” do processo se reforça a partir do nascimento de um filho do próprio sangue dos envolvidos, mesmo nos casos em que há doação de gametas.
Contudo, esse estatuto somente é reconhecido quando os procedimentos são realizados em um casal hetorossexual. Nesse sentido, a configuração familiar legítima e legitimada nesses processos é a tradicional patriarcal, na qual não há espaço para a homoparentalidade ou para mães solteiras. Nessa reprodução da ordem familiar patriarcal, a posição da mulher como ser gestante e maternal se reforça pelo advento das tecnologias reprodutivas. Explicita-se, assim, um processo de intensa intervenção médica com vistas ao cumprimento de uma expectativa social sobre as mulheres, calcada na maternidade.
Na reprodução assistida, a transferência do momento da fecundação do ambiente íntimo domiciliar do casal para o consultório introduziu o médico como peça indispensável para a procriação. Esse profissio-nal está no cerne do atendimento aos usuários dessas novas tecnologias reprodutivas conceptivas, sendo ele responsável pela avaliação diagnóstica do casal, prescrição e avaliação dos exames e definição da forma de tratamento (LUNA, 2007).
Há na relação médico-paciente uma assimetria de conhecimento e de poder (BOLTANSKI, 1989), na qual o médico se constitui como a autoridade moral perante os usuários e responsável pelas decisões éticas do tratamento (TAMANINI, 2003). Essa situação pode comprometer a autonomia dos pacientes quanto a suas próprias escolhas, já que todo o processo terapêutico é conduzido pelo médico. Nesse sentido, para que os usuários de reprodução assistida tenham condições de exercer sua autonomia por meio de suas escolhas reprodutivas, é necessário que essa relação assimétrica seja atenuada ao máximo possível.
Após constatada a necessidade de utilização das tecnologias reprodutivas para realização do projeto reprodutivo do casal, é fundamental que o médico lhes ofereça, de maneira clara e acessível, todas as informações possíveis sobre as opções de procedimentos, o tempo necessário para fazê-los, os riscos e benefícios destes, seus custos e as taxas de sucesso e fracasso do tratamento indicado. Tais informações são essenciais para que os pacientes façam suas escolhas de maneira livre e esclarecida, podendo inclusive desistir do tratamento de modo a resguardar sua integridade física e psicológica.
O compromisso ético dos médicos com o resguardo dos usuários da reprodução assistida não se encerra com o esclarecimento dos riscos dos procedimentos na assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Isso ocorre porque os usuários podem não ter domínio das categorias médicas e dos procedimentos e efeitos destes sobre sua saúde. Nesse sentido, o termo de consentimento não é elemento suficiente para resguardar a integridade dos usuários nem para garantir sua autonomia perante as escolhas a respeito do tratamento. Mesmo após a assinatura do termo, os médicos ainda estão obrigados a agir de modo a garantir a melhor terapêutica para os usuários, sem que estas lhes causem qualquer malefício. Deste modo, ainda que o termo de consentimento opere como elemento de distribuição da responsabilidade entre o médico e os usuários (LUNA, 2007), já que esses concordam em realizar os tratamentos apesar dos riscos descritos, cabe à equipe médica zelar integralmente pelo bem- -estar dos pacientes em todas as etapas do tratamento.
A popularização das tecnologias reprodutivas no Brasil se deveu à apropriação do seu debate pela mídia, que tende a apresentar o tema de modo sensacionalista, idealizando os feitos médicos e omitindo o alto grau de insucesso que os procedimentos apresentam na efetiva consumação da procriação (CORRÊA, 1997). O imaginário popular é o de que a medicina venceu as limitações biológicas dos casais inférteis, havendo disponíveis no mercado alternativas terapêuticas que garantem a realização do projeto reprodutivo de casais para os quais a relação sexual não vinha viabilizando uma gestação. Aliada a essa idealização da tecnologia biomédica comparecem também muitas alusões aosefeitos danosos dessas novas tecnologias, tais como a seleção eugenista de traços genéticos de embriões, como, por exemplo, o sexo, a viabilização de geração de descendentes biológicos de homossexuais, a gestação em mulheres solteiras ou em idade avançada, entre outros.
A regulamentação do acesso às tecnologias reprodutivas conceptivas apresenta como premissa moral a normalidade da família patriarcal (DINIZ, 2000). Mulheres solteiras e pessoas homossexuais são considerados sujeitos inadequados para o acesso à assistência reprodutiva, havendo uma polarização maniqueísta no debate sobre a qualidade das novas tecnologias reprodutivas: se, por um lado, persiste a idealização da tecnologia biomédica na pretensa superação de limites encontrados pelos casais heterossexuais em seu planejamento reprodutivo, por outro vige a ideia de que pessoas homossexuais ou fora de relacionamentos heterossexuais estáveis não estariam aptas a educar crianças.
A questão da elegibilidade dos beneficiários das tecnologias reprodutivas evidencia esse pressuposto moral, já que se considera apenas casais heterossexuais inférteis ou infecundos como possíveis beneficiários da reprodução assistida. Esse pressuposto moral desconsidera o potencial transgressor que as novas tecnologias apresentam para a moralidade heteronormativa vigente. Nesse sentido, a prática da reprodução humana assistida tem mantido afirmações convencionais sobre a sexualidade, o gênero e a reprodução, predominando a noção de que as tecnologias não mais que replicariam uma suposta reprodução sexual natural e heterossexual (DINIZ & COSTA, 2005; CORRÊA & ARÁN, 2008). Um dos principais argumentos para a normatização restritiva do acesso às tecnologias reprodutivas é o do risco para a criança nascida por esse meio, mas o risco é o “de que outros arranjos familiares tenham acesso à tecnologia reprodutiva e constituam famílias concorrentes à ‘família completa’” (DINIZ, 2000).
Estamos em plena revolução na reprodução humana, sendo que as tecnologias genéticas e de reprodução, implementadas atualmente, abalam as estruturas sociais fundamentais (BLANK, 1990). Essas novas tecnologias reprodutivas trazem grandes desafios para a estrutura familiar tradicional, que era supostamente natural mas que atualmente se torna possível apenas pela intervenção biomédica, nos casos de infertilidade e infecundidade.
Não cabe, portanto, delimitar uma diferenciação entre reprodução natural e reprodução artificial: diversas experiências de reprodução humana, atualmente, são mediadas tecnologicamente, mesmo entre casais heterossexuais, e mesmo as experiências de procriação não convencionais carregam a marca indelével da biologia humana e da genética. No Brasil, por exemplo, houve o caso, amplamente noticiado pela mídia impressa e virtual, de duas mulheres lésbicas que produziram uma gestação que abalou a própria noção de maternidade.
O óvulo de uma delas foi fertilizado in vitro por material seminal adquirido em banco de esperma, tendo sido implantado o embrião no útero da segunda mulher. Do ponto de vista médico, o bebê seria filho daquela que transmitiu a carga genética; do ponto de vista jurídico, mãe é aquela que gestou o bebê. Esse é apenas um exemplo de como as tecnologias reprodutivas permitiram a realização de novas formas de constituição de linhagens familiares, apesar de ser um tema polêmico e que é atravessado por discursos morais sobre o que haveria de ser uma família “normal”.
Na perspectiva dos direitos humanos, é fundamental resgatar o direito à constituição de família como direito universal. A esse direito não caberiam exclusões, apesar de a família patriarcal ser uma forma de constituição familiar hegemônica em várias sociedades. Isso significa que as novas tecnologias reprodutivas abrem a possibilidade de constituição de famílias para muitas pessoas que supostamente não teriam condições de procriar, e o desafio contemporâneo é não tornar valores morais majoritários parâmetro para a exclusão de determinadas pessoas do acesso à reprodução humana assistida.
A criação de técnicas que permitem a fecundação fora do corpo feminino inaugurou uma série de novas situações para as quais a reflexão ética se mostra fundamental (NOVAES & SALEM, 1995). Um dos maiores desafios éticos das novas tecnologias reprodutivas diz respeito a pessoas e embriões que não estarão envolvidos na configuração familiar viabilizada pela reprodução assistida. As questões da barriga de aluguel, dos doadores de esperma e dos embriões excedentes e não implantados no útero merecem reflexão.
De acordo com a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, é proibida a prática de doação temporária do útero, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”, salvo quando a doadora mantiver parentesco de até segundo grau com a mulher impedida de gestar o bebê em seu próprio útero. Essa restrição não se fundamenta apenas em questões de incompatibilidade orgânica, mas sobretudo visa coibir o uso instrumental do corpo feminino com fins comerciais. Dessa forma, é proibida a prática de comercialização do útero para fins de gestação de um embrião gerado por meio de fertilização in vitro.
Essa prática, no entanto, é corriqueira no País, e uma rápida busca pela ferramenta Google a partir do termo “barriga de aluguel” denuncia que muitas mulheres se disponibilizam a alugar o útero a terceiros em troca de dinheiro. Essa é uma situação que vulnerabiliza tanto a mulher doadora do útero quanto o casal que busca formas de consumar o seu desejo procriativo. A mulher doadora se encontra em situação de assimetria de poder, já que sua disponibilidade tem fundamento na dificuldade econômica, e também porque quando o acordo sobre a gestação é realizado ela não pode prever a repercussão emocional que a experiência da gestação irá ter sobre seus projetos de vida.
Por outro lado, o casal que doou material genético para a fecundação do embrião, ao se expor a uma prática ilícita, não tem assegurado o direito ao acesso ao bebê após o nascimento, devendo recorrer à Justiça. A manutenção da possibilidade de utilizar um útero temporariamente doado para a reprodução assistida apenas em caso de parentesco próximo visa assegurar que hajam laços entre todos os envolvidos, inclusive com a mulher que gestou o bebê em seu útero. A doação de gametas também não pode ter fins comerciais de acordo com a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina. A norma determina que a identidade dos doadores de gametas e receptores de material seminal ou ovular seja mantida em sigilo, resguardando o anonimato dos envolvidos e prevenindo, assim, conflitos éticos que poderiam emergir da disputa pela responsabilidade na concepção.
A fertilização in vitro (FIV) é o procedimento que propiciou o surgimento do embrião extracorporal. Esta tecnologia permite a criação de embriões em laboratório para posterior implantação no útero da mulher. Desse modo, pode-se identificar, em termos gerais, a FIV como procedimento que cria embriões fora do corpo feminino (CORRÊA, 2005). Nesse processo, recorrentemente são produzidos mais de quatro embriões por procedimento, quantidade máxima estipulada pela norma médica para a implantação de embriões no útero com segurança para a mulher e para os futuros fetos.
O excedente não transferido para o corpo feminino não pode ser destruído e obtém destinação a partir da decisão dos genitores (Resolução CFM nº 1358/92). Essa produção supranumerária de embriões visa cobrir possíveis falhas e perdas nas diversas etapas que compõem os procedimentos de reprodução assistida. Devido à impossibilidade de controlar esses eventos, a solução encontrada foi a superprodução de óvulos – por meio da hiperestimulação ovariana – e de embriões (CORRÊA, 2005).
Esse processo, que visa a ampliação da margem de sucesso do tratamento para engravidar (DINIZ & CORRÊA, 2000), faz com que o resultado dos procedimentos de reprodução assistida não seja somente a gravidez, mas também um montante de embriões que precisam receber destinação. Dentre os destinos possíveis atualmente para esses embriões excedentes está o congelamento em tanques de nitrogênio líquido, a doação para pessoas usuárias da reprodução assistida e a sua utilização em pesquisas científicas envolvendo células-tronco embrionárias.
De acordo com a Resolução CFM 1358/92, os embriões excedentes produzidos a partir de FIV não podem ser eliminados ou destruídos, sendo os laboratórios obrigados a mantê-los congelados por tempo indeterminado4 caso os genitores não lhes dêem outra destinação. No momento da coleta de gametas para fertilização, os genitores são chamados a explicitar qual destino deve ser dado aos embriões extracorporais supranumerários em caso de doença grave ou falecimento de uma das partes, ou divórcio. Aos usuários, cabe também expressar o desejo pela doação dos embriões excedentes criopreservados.
Os embriões não implantados no útero podem também ser destinados para a realização de pesquisas científicas. No mês de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal passou a permitir que o Brasil desenvolva pesquisas a partir de células-tronco embrionárias.
A partir de então, os laboratórios estão autorizados a manipular embriões humanos de modo a produzir conhecimento e terapêuticas a partir de células totipotentes. Os embriões a serem utilizados nesses procedimentos são aqueles excedentes de tratamentos de reprodução assistida, os quais somente podem ser doados para pesquisa com o consentimento dos genitores e se estiverem congelados há mais de três anos (Brasil, 2005)5. Contudo, as diversas possibilidades de destinações para os embriões extracorporais, todas submetidas ao consentimento livre e informado dos genitores, não eliminam os desafios éticos impostos pela existência do embrião extracorporal. Caso os genitores decidam doar embriões para outros casais, por exemplo, esbarram no fato de não haver
4 A interdição para descarte ou destruição de embriões humanos está atrelada à proibição da realização de aborto no Brasil (Lei 2848, de 1940 – Código Penal). Evidencia-se, assim, a centralidade do embrião nos debates públicos sobre aborto, pesquisas com células-tronco e regulamentação da RA no Brasil. 5 Ressalte-se, ainda, que todos os projetos de pesquisa envolvendo embriões humanos deverão passar por avaliação de um Comitê de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Ver Resolução CNS 196/96.qualquer legislação que regulamente os termos dessa transação, bem como a responsabilidade de cada uma das partes sobre o futuro bebê. Merece consideração, ainda, a seleção e manipulação de embriões para implantação no útero.
O procedimento de escolha de embriões com determinadas características, mesmo que para aumento da efetividade do tratamento e satisfação dos usuários, é um tema que desafia da discussão sobre reprodução humana assistida em termos éticos. Entre aqueles embriões que serão de fato implantados no útero, existem alguns que podem sofrer manipulações genéticas de modo a evitar que determinadas enfermidades genéticas e hereditárias sejam desenvolvidas. Para esses casos específicos, a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina permite que seja feita a manipulação do embrião.
Mas há casos em que a manipulação genética não é permitida, tais como a definição de características físicas – como cor da pele, dos olhos e dos cabelos – ou eliminação de deficiências. De acordo com Costa (2006), a manipulação de embriões para determinação do sexo de futuros bebês é um dos pontos mais recorrentes de violação da Resolução do CFM. Nessas situações, preocupa eticamente manipulações que visem um “melhoramento da espécie”, no sentido de eliminar diversidades corporais que fujam de padrões estéticos, funcionais e raciais hegemônicos.
Essa primeira aproximação ao tema da ética implicada na assistência à reprodução humana visa considerar a autonomia dos usuários dessas tecnologias biomédicas, por meio de um diálogo real e claro com os profissionais de saúde que conduzem os tratamentos.
Diferentes indivíduos que realizam seu planejamento familiar e que reconhecem nas tecnologias reprodutivas uma oportunidade para o desejo da procriação apresentam modos de vida diversos, não cabendo ao profissional da saúde a aprovação moral ou não de uma dada constituição familiar. O olhar bioético é fundamental nesse processo por aproximar as decisões éticas no campo da assistência reprodutiva aos direitos humanos fundamentais.
A adoção de tecnologias biomédicas deve estar comprometida com a promoção da autonomia e liberdade das pessoas, e não com a manutenção de padrões morais hegemônicos e com a hierarquização de valor instaurada na comparação entre seres humanos distintos entre si. Os procedimentos de manipulação genética de embriões com a intenção de eliminação da diversidade humana considerada indesejada merecem especial atenção dado seu viés discriminatório e eugênico.
Da mesma forma, a restrição do uso das tecnologias reprodutivas a indivíduos que aderem à configuração familiar patriarcal e heterossexual deve ser considerada criticamente, dado o caráter discriminatório do não reconhecimento da legitimidade de famílias homossexuais ou formadas por mães solteiras. Por fim, alertamos para a urgência de uma legislação que regulamente os procedimentos envolvendo tecnologias reprodutivas e na qual os abusos sejam rechaçados e o respeito aos direitos humanos resguardado.